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Uma mesa de madeira e uma página de revista sobre ela. Duas mãos de alguém que usa blusa preta. As mãos amassam a página para depois desamassá-la, tentando retomar a lisura inicial para enfim amassá-la novamente. O rosto da mulher, foto feita para publicidade em algum periódico, vai perdendo o brilho. As mãos, no início limpas, ficam escurecidas. A cada novo amassamento, a tinta do papel passa à pele humana. Aos poucos, a figura bonita e certamente photoshopada perde seus contornos. A tarefa – no início, para quem a assiste, uma espécie de mito de Sísifo – termina quando não resta mais nada da figura humana na folha, agora branca, mais fina e cheia de saliências e irregularidades na sua superfície. Na cena seguinte, uma nova foto retirada de revista aparece sobre a mesa. Agora vemos um homem cujo rosto faz parte de propaganda de um relógio de pulso. As mãos limpas recomeçam seu trabalho: amassar e desamassar até que a imagem desapareça.  Assim segue a sequência da obra intitulada “Reverso”, que compõe a exposição Instrumentos, do artista tunisiano Ismaïl Bahri.

 

 

 

“Reverso”é obra construída a partir da destruição de foto publicitária. É fácil dizer que o artista contrapõe seu trabalho às imagens retocadas que vemos em revistas, embora seja também redutor apresentar o trabalho de Bahri assim. Se há destruição de rostos bonitos em fotos de revista, há também a lenta construção das mãos que, pacientes, amassam e desamassam aquelas páginas. Paciência que pertence ao artista, mas também demandada ao público diante de todos os vídeos. Em “Linha”, passamos minutos observando um braço sobre o qual uma pequena gota d água se move a cada vez que o pulso se mexe minimamente, acompanhando as batidas do coração. Em “Fonte”, uma mãos segura papel que vai sendo queimado pouco a pouco. Diante de uma primeira cena, esperamos a mudança. Ela vem, mas é sutil e demora.

Se no caso das três obras já citadas atentamos às mudanças minuciosas de imagens que, em princípio, parecem não se transformar, na obras como “Orientações” e “Foyer” as imagens nos escapam e tentamos compreendê-las pelas conversas registradas nos vídeos. No primeiro caso, o artista passeia pela cidade com um copo de café na mão. O que vemos é um pedaço do chão e o líquido preto que às vezes reflete rapidamente um pedaço de uma rua, um poste, um prédio. Fora isso, quem nos anuncia o que se passa são os transeuntes curiosos que perguntam a Bahri o que ele está fazendo. A curiosidade dos tunisianos, que encaram com riso ou desconfiança o trabalho do artista, também aparece em “Foyer”. Dessa vez, não há mais café que reflita a cidade. Bahri filme tudo com uma folha colada na câmera. Ela cobre a lente, de modo que temos na tela um branco acinzentado que muda conforme o vento e a luz do sol. Os diálogos muitas vezes esbarram na questão racial: muitos dos tunisianos creem que Bahri, por conta de seu fenótipo, é francês. Em uma das conversas, um deles diz que, fosse ele o dono da câmera perambulando pela cidade, já teria sido parado pela polícia.

Afirmei muitas vezes que, no mundo de hoje, somos bombardeados por imagens. A afirmação não apenas é um clichê como contém grande imprecisão. Qualquer um que possui visão é bombardeado por imagens. Basta estar acordado para estar diante delas. O bombardeio atual, para ser mais precisa, tem a ver com telas e com a relação viciosa que estabelecemos com algumas delas. Escrevo com propriedade pois estabeleci um vício com o instagram, site que visito deslizando os dedos pela tela do celular e me demorando, no máximo 2 ou 3 segundos diante de cada foto. As fotos desaparecem, mas sempre há novas imagens. Esse bombardeio, uma mostração de fotos sem pausa, habita meu cotidiano muito mais do que museus ou mesmo salas de cinema. Como lidar com as imagens destes locais? Como, podem se perguntar os artistas, produzi-las no momento em que qualquer smartphone é o concorrente fortíssimo, oferecendo ao público milhares de fotos a qualquer hora e em qualquer lugar?

Bahri parece ter escolhido o caminho reverso – para usar aqui o nome de um dos seus vídeos. Em vez de mostrar demais, como fazem nossos gadgets, mostrar menos. Seu trabalho é feito de vídeos que poderíamos chamar de incompletos. Vemos as mãos ou o braço, mas não vemos o rosto da pessoa que está ali. Vemos imagens que desaparecem. Da folha branca não surge um desenho, mas as cinzas. As cidades aparecem de forma oscilante num copo de café ou então em frases de transeuntes. Chegamos à exposição e conhecemos histórias, mas a maneira como elas nos são contadas trabalha mais por subtração do que por adição, como se na experiência da falta, da imagem branca que quase não muda, da lentidão, pudéssemos produzir algo. Se a palavra imaginação está ligada à palavra imagem, é certo que autores como Johantan Crary  e Cristoph Türcke vêm alertando sobre nossa relação viciosa com imagens fornecidas por telas e as consequências terríveis que esse hábito de olhar o tempo todo para celulares e computadores pode causar. “Instrumentos” é um convite a outro olhar e, por isso, também a outra temporalidade, difícil, mas bonita. “Nada mais lindo do que o que desaparece diante de nossos olhos”, diz a frase repetida diversas vezes no belíssimo filme  Esplendor, de Naomi Kowase. Essas palavras são boa epígrafe para Instrumentos, intervalos de tempo em que lembramos, apesar da hiper aparição de tudo em pequenas telas que carregamos no bolso, que o desaparecimento também é belo e, por que não dizer, criador.

 

 

Desamar.

No ano passado, fiquei fascinada com Elle e bem frustrada com Animais Noturnos. O primeiro filme vem a minha cabeça até agora. O segundo me pareceu forçado, simplista. Sem precisar recontar as duas histórias, falando para quem sabe delas, digo que em Elle há um elemento que nos instiga e nos provoca: uma mulher que estabelece uma relação com seu estuprador. Em Animais Noturnos, há estupro e feminicídio praticados por uma pequena gangue liderada por um psicopata.  O episódio do estupro faz parte do livro escrito pelo homem que, deixado por sua noiva no passado, enfim escreve grande obra literária e envia-a para a ex. Pareceu-me que a história revela a sua antiga namorada a dor que ele teve ao perdê-la para outro homem e descobrir que ela fizera um aborto de um filho seu (como o filme mostra nos flashbacks da moça). O estupro e o assassinato de duas mulheres,esposa e filha do protagonista do livro, parecem metáforas para a dor sentida pelo escritor. Em tempos de tanta discussão sobre a cultura do estupro, fiquei me perguntando se, nesse filme, o estupro não apareceria banalizado e até mesmo mostrado de maneira perversa – usado como forma de representar a dor de um homem que levou um fora -, já que a elaboração do seu luto amoroso passa pelas imagens de dois corpos femininos mortos depois de violados e estirados num sofá no meio da estrada. O coração mutilado é o do escritor, mas a carne machucada na tela e morta é ainda das mulheres.

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Elle não. Considerado machista por muitas mulheres, pareceu para mim um filme feminista. De um feminismo  menos panfletário, que ousa falar das ambiguidades. O estuprador tem seu papel importante, mas quem importa na trama é ela – Elle, afinal, como já anuncia o título do filme. Podemos até saber que o homem que estupra a protagonista tem lá suas questões, mas o fio que amarra a trama conta a história dela.

Agredida e exposta pelo pai e pela mídia quando criança, com a vida marcada por um escândalo, a empresária de games entra, anos depois da tragédia do passado, numa relação com seu abusador. Relação que perdura e é atravessada por encontros com o marido de sua melhor amiga, com quem ela tem um caso. O processo todo é interrompido quando ela mata seu pai – sabemos, por sua boca, que ela o matou quando decidiu visitá-lo. Passada a morte do pai, ela já pode falar. Dizer à melhor amiga, pedindo desculpas, que ficou com seu marido, dizer ao estuprador que o que ele faz é errado. Matar o pai e enterrar um pedaço duro do seu passado parece condição para que ela saia dos processos ruins que estabeleceu muito mais velha.

O filme me vem à cabeça toda hora porque me reconheço em Michèle, a protagonista de Elle. Acho que vale explicar aqui que minha vida não tem nada a ver com a dela – depois das reações à música do Chico Buarque é preciso explicar o óbvio. Identifico-me porque já vivi situações em que sofri, já vivi relações abusivas – entendendo que até mesmo amizades com mulheres podem ser abusivas – e que esse passado me faz, com frequência, voltar ao lugar do abuso. O lugar do abuso não é apenas o lugar do corpo violado. O lugar do abuso é o lugar em que nos sentimos abusadas de alguma maneira, inclusive emocionalmente, e por isso ele pode existir em relações sem contato físico. Elle, para mim, é a história de uma mulher que revisita um lugar duríssimo de abuso e fica nele por um tempo. Essa permanência talvez aconteça porque, na sua infância, ela viveu sem entender direito um lugar de abuso e exposição. Mas o bonito do filme é que ela sai desse lugar. Ela consegue visitar – e matar! – o pai, ela enterra-o junto com sua mãe, ela vai viver com a amiga, que durante um tempo ela traiu – mas com quem ela também já teve uma relação erótica.

Meu incômodo com o feminismo nunca será maior do que minha revolta contra o machismo, mas é preciso que eu diga que sigo muito incomodada com alguns discursos do feminismo atual. Há um mundo perfeito que não corresponde à nossa realidade. O mundo dos homens desconstruídos, a desconstrução como elemento estático e não como processo. Junto com isso, mulheres “empoderadas” que também são puras vítimas.

Elle sai desse discurso simples, dos contrários, do machista versus homão desconstruído etc. O filme nos conta das muitas mulheres que escolhem manter relações com um homem que abusa delas. Não estou dizendo com isso que desejamos ser estupradas. Não conheço ninguém que deseje ser estuprada. Mas novamente: é preciso ler as músicas do Chico Buarque e os bons filmes com um pouco mais de sutileza. Não querer ser estuprada não invalida as muitas vezes em que nos relacionamos com pessoas que nos faziam mal. O lugar do abuso pode ser um lugar sem saída, mas é preciso admitir que em parte das histórias das mulheres ele é o lugar escolhido. E se eu estiver sendo muito ousada ao falar das outras, falo de mim: eu já escolhi permanecer no lugar de abuso. Pois já quis ficar ao lado de pessoas que me desqualificavam, que me tratavam mal. A saída dessas situações nunca foi óbvia. Todo caminho do desejo é estranho, e todo caminho de abandono do desejo também. Às vezes é preciso fazer coisas ridículas, exageradas, humilhantes, espantosas, para enfim acabar com uma situação. Elle, para mim, mostra o caminho tortuoso, duro, esquisito, do fim de um desejo. Foi preciso que Michèle se recolocasse no lugar de pessoa abusada para matar seu pai. Foi preciso que matasse seu pai para acabar com uma relação com seu estuprador – não é ela que mata o cara, mas novamente eu insistiria nas sutilezas da arte. Na sequência do filme, o cara só morre depois da morte do pai da protagonista.

Não sou crítica de cinema. Considero-me uma amadora falando de filmes. Esse texto não é sobre os dois filmes que cito. Ele é sobre mim e sobre como esses dois filmes me afetaram. Animais Noturnos mostra corpos machucados e mortos, construção de um homem que escolheu a mutilação de duas mulheres como imagem para a dor de seu luto. Entre outras coisas, isso não me agradou. Elle falou dos desejos de uma mulher “empoderada”, mas não como certos discursos gostariam. Ter pulso firme e ser independente não livrou-a das ciladas dos seus desejos nem impediu-a de refazer o inevitável caminho do trauma.

Ao contrário de Michèle, não sou durona. Mais do que qualquer outra coisa, desejei por muito tempo construir relações de afeto, de amor. Por isso, acho que falei muito dessa atividade (difícil!) que é amar alguém aqui no blog. Esse texto é sobre o desamar. Sobre como o fim das relações, que por muito tempo foram para mim verdadeiros pesadelos, se tornaram ao longo desses anos a possibilidade de voltar a gostar de mim. Esse texto é sobre como eu passo uma boa parte do tempo numa guerra contra mim mesma, repetindo lugares de sofrimento, mas é também sobre os caminhos esquisitos que me levam pra fora dessa dor toda. Desde que vi Elle, são as cenas do filme que me vêm à cabeça quando consigo sair de uma cilada. Esse texto é sobre aquele trecho de Alcohol, de Jorge Ben: em vez de uma nova trombada, uma marcha ré com dignidade.  Esse texto não se pretende crítica de cinema. Tampouco pode ser um texto de auto-ajuda – eu acho que auto ajuda é um termo errado para nomear livros em que há sempre hetero ajuda, a palavra do outro guiando minha vida. Esse texto, enfim, é no máximo um relato. Sobre como desamar pode ser bom. Sobre o momento em que saímos do cemitério. Sobre  as dificuldades de convivermos com nossa vontade de nos colocarmos em lugares de abuso.

E antes que alguém me pergunte – não há texto sobre amar e desamar que não leve algum amigo ou parente a me ligar e saber o que aconteceu – eu não terminei o meu namoro (que vai bem, obrigada).  Eu achei melhor explicar as sutilezas do discurso em tempos de perseguição ao Chico Buarque.  Não vou mentir, passei um tempo num quarto escuro. Foi bem ruim. O problema do quarto escuro é que a gente começa a achar que não existe mais saída praquilo. Esse texto talvez ajude algum leitor a se lembrar de que há quase sempre algum jeito de sair. Recentemente consegui levantar e abrir a janela. Esse texto, enfim, tem a alegria de quem conseguiu colocar a cara no sol. Nessas horas eu sempre gosto de lembrar: a vida, apesar dela mesma. Como pode ser boa.

 

Um agradecimento a Chico Buarque e a Paul Verhoeven: como me contou meu namorado sobre um texto que leu comentando o Elle, a indústria cultural pode ser sim espaço de elaboração. Eu que o diga. Abaixo um recado pra quem disse que Chico só coloca mulheres numa posição de submissas:

https://www.youtube.com/watch?v=cGxtihukKiI

 

 

 

1- Fontes confiáveis afirmam que se você repete o trecho amado pela esquerda três vezes no banheiro e dá descarga a Marcela Temer aparece no espelho dando tutorial da trança lateral.

 

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2- Pra abrir as portas do palácio do jaburu basta dizer sangria desatada três vezes.

3- Se você inverte o sentido do último programa apresentado pela Xuxa ela diz “Michel é Eduardo Cunha”.

4- Na numerologia, se você soma todos os números que aparecem no áudio do Jucá o número alcançado é 2017

5- Numa entrevista recente, Rodrigo Hilbert revelou que acorda Fernanda Lima com pão artesanal e geleia sem açúcar cantando esse áudio, que ele musicou enquanto praticava na sua cítara construída na garagem da mansão do casal.

6- “A solução mais fácil era botar o Michel” não é frase original de Machado. Essa frase foi dita no ano de 2010 por um produtor de música sertaneja que, desanimado com a falta de novos talentos na cena musical brasileira, disse que a solução era colocar o Michel Teló. Atualmente Machado responde um processo, acusado de plágio.

7- Moradores do Acre que não quiseram se identificar dizem que Bruno Borges teria sido visto adentrando uma nave espacial no dia em que desapareceu. Quando perguntado para onde estaria indo, ele teria respondido “estou indo viver com o supremo, com tudo”.

 

8- Se você escuta atentamente o álbum Abbey Road, dos Beatles, percebe que na última faixa John Lennon canta “o Eduardo Cunha está morto” em aramaico. A informação teria chegado à Interpol, que investiga o envolvimento de Maluf nessa suposta morte.

 

9- Professores de ioga que se declaram contra o golpe têm substituído o “Namastê” do fim da aula  por “um grande acordo nacional”. Pesquisadores da USP revelam que essa mudança gerou maior tonificação nos corpos dos alunos, que adquiriram resistência.

 

10- Mas só os pesquisadores de Harvard, Yale e Princeton juntos chegaram ao resultado da final da pesquisa que afirma, contrariando 90% da população brasileira, que fazer camiseta e colocar o avatar do facebook com esse áudio de Jucá não mudou em nada a situação lamentável do país.

[Antes do filme, dois parágrafos de devaneios feministas]

Começo esse post dizendo que ao assistir Elle, do diretor Paul Verhoeven, não fiquei mal e não achei o filme uma apologia do estupro, tampouco um reforço na cultura do estupro. E vejam, há muitas representações que a mim parecem contribuir para esta cultura. As fotos da Anne Guedes com bebês eu acho uma obscenidade, algumas novelas e séries da Globo, capas de revista para homens em que há uma pose clássica – a mulher de costas, de lingerie ou biquíni, com o pescoço torcido olhando pra trás, como que convidando o homem a abordá-la por trás, a invadir seu corpo – funks como o “Malandramente”, Luiz Felipe Pondé dizendo que o homem deve proteger a mulher, apelando pra instinto animal. Tudo isso eu acho que contribui para a cultura do estupro.

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Este filme, não achei. Também aproveito para dizer o seguinte: sou totalmente contra a ideia de que não devemos mais ter fotos, filmes, séries, obras de arte que tratem do estupro. O argumento principal contra esse tipo de exibição diz que a vítima pode reviver o que passou. Bom, talvez pudéssemos criar uma política de advertências – embora, como disse lindamente Roxane Gay, repetida agora livremente nas minhas palavras, as advertências parecem às vezes uma política de evitar o trauma e evitar o trauma é impossível, uma vítima de um trauma vai revivê-lo (aliás, é isso que faz dele um trauma e não um evento qualquer na sua vida). Mas eu sou contra pararmos de falar de estupro não porque não esteja nem aí para as vítimas. Eu sou contra justamente pelo contrário. É preciso que consigamos falar, elaborar o estupro. Essa prática recorrente, que violenta mulheres. Essa prática tão naturalizada em tantos discursos e ações. Tenho a sensação que a proibição desse assunto geraria o que vejo em muitas famílias – e eu tenho certeza que vocês já viram alguma família assim – em que um assunto tabu não é falado e as pessoas fingem que nada aconteceu (uma morte difícil, uma pessoa que usa drogas, um pai alcoólatra que bate na mãe, uma pessoa que teve algum tipo de surto, um amante que todo mundo sabe que existe etc). O que costuma acontecer é que o não dito tem grande peso. E esse peso, uma vez que não é nomeado, é vivenciado de outras formas: pânico, depressão, excesso de peso e, sobretudo, na repetição do assunto tabu, que em vez de elaborado aparece novamente realizado. Então, a meu ver, a melhor forma de combatermos a cultura do estupro é falá-la, criticá-la, trabalhá-la, discuti-la, e não o contrário.

[E agora um texto longo, porque estou cheia de coisas pra tentar entender]

Mas vamos ao filme. Eu achei um filmaço e ainda não entendi muita coisa, então deixo no blog pra ver se os leitores me ajudam a entender elementos que me chamaram a atenção. Michelle age normalmente depois de ter sido estuprada. Não chora, não vai à polícia, não treme, não muda de casa. A maneira como conta isso ao ex marido, à sócia a ao amante é tranquila. Sua vida continua e ela quer saber quem é aquele homem, que continua perseguindo-a, mandando mensagens e reparecendo em sua casa, mas nada disso interrompe seu trabalho, seu cotidiano. Ao fazer o exame de sangue ela se recusa a tomar a PEP, aliás, porque leu sobre seus efeitos colaterais e não quer que isso atrapalhe seu trabalho.

A indiferença de Michelle e o jogo que ela inicia com seu agressor poderia incomodar. Um estupro, no fim das contas, é uma experiência terrível passada por milhares de mulheres todos os dias. Mas, acho eu, é preciso olhar para o resto da vida de Michelle. Não há emoção, hesitação ou fragilidade em nenhuma das suas relações. Michelle trata tudo com frieza e objetividade. Se se vincula, e se sofre, isso não aparece objetivamente – e uma vez que o filme não recorre a recursos que expliquem sua vida interior, Michelle é uma grande incógnita. Não é só com o estupro que Michelle mantém uma relação fria e distante. É com seu filho, com seu neto que vai nascer, com seu ex-marido, com sua melhor amiga – esposa de seu amante, com quem ela tem relações sexuais sem demonstrar grande crise de consciência -, sua mãe, noiva de um jovem garoto de programa, seu funcionário Kurt, agressivo com ela no trabalho e seu pai, sobretudo seu pai, católico fanático que assassinou diversas pessoas quando ela era pequena e ainda a envolveu no final do crime.

A história do pai, aliás, parece uma boa chave para entender essa personagem tão intrigante. Aos sete anos Michelle foi fotografada só de calcinha e coberta de cinzas. Ajudava o pai, ensanguentado depois de matar várias pessoas do bairro, a queimar os móveis da casa e as próprias roupas, quando a polícia chegou e ela foi fotografada. Ao contar o motivo que levou o pai à chacina, Michelle adulta comenta que ele era católico fanático e que se chateou quando os pais do bairro impediram que ele seguisse entrando nas casas rezar (ou fazer algo do tipo, que agora me escapa) com as crianças. Quando conta a  cena dos dois queimando tudo, Michelle não relata medo, terror, insegurança. Ao contrário, fala da intensidade, de como foi tomada por aquilo.

Essa intensidade parece reaparecer em seu trabalho: dona de uma empresa de vídeo games, ela desenvolve, na época do estupro, um jogo em que o jogador pega uma mocinha e eles transam. O sexo, tal como aparece nas cenas que vemos, se parece muito mais com um estupro. Um monstro cheio de tentáculos que enreda sua vítima de costas e a penetra. Ao criticar uma das cenas desenvolvidas para o início do jogo, Michelle repreende seu funcionário. Se ele fizer a cena daquele jeito, os jogadores não terão uma ereção.

O primeiro game desenvolvido por Michelle foi, se não me engano, Cronos. Faria aqui uma hiper interpretação (com o risco de chutar pra fora do gol): Michelle passou por algo terrível na infância. Seu pai foi preso e ela foi conhecida como filha e cúmplice de um psicopata, torturada pela mídia – no filme, assistimos um trecho de um dos documentários feitos sobre o caso – e criada por uma mãe apresentada (e nomeada pela própria Michelle) como imoral, ninfomaníaca. Todos esses fatos poderiam deixá-la num eterno papel de vítima – e aqui, não discuto o fato dela ter sido, sim, uma vítima, mas no caminho tomado pela personagem. Em vez de vítima, Michelle torna-se uma heroína. O lado lúdico da terrível tragédia da sua infância reparece no seu trabalho: Cronos, o deus grego que devora seus filhos, vira vídeo game. O horror do mundo passa a ser jogável, fonte de diversão. Todo o massacre que ela sofreu nas mãos da polícia e da mídia – e acho que é preciso atentar à quantidade de cenas de tevê que aparecem no filme – leva-a a dominar o mundo das imagens, transformá-lo no seu trabalho, na sua fonte de dinheiro, no seu lugar de reconhecimento. E ela comanda isso – e sua própria história- com a frieza de uma personagem de vídeo game. Uma heroína, que depois de estuprada por um desconhecido, revive a cena imaginando como teria sido matá-lo usando objetos da sua cozinha.

Os novos encontros de Michelle com seu agressor, que acaba se revelando ser seu vizinho, se parecem muito com cenas de vídeo games. A protagonista compra um machado, um spray de pimenta, aprende a atirar. Os embates que ela tem com o estuprador, que a ataca novamente, são cheios de tapas, socos, sangue. A referência ao mundo dos games, presente no filme todo, e também a noticiários que mostram guerras e assassinos como filmes de ficção, talvez ajude a explicitar o que vemos em outros filmes, que escapam das acusações de machismo: o quanto estetizamos a violência e a perseguição às mulheres. Afinal, um filme em que há um estuprador que é morto ou preso, mas que antes disso bate e pega uma mulher pelos cabelos, não é também ele uma grande apologia do estupro? Os noticiários que vemos sobre massacres, chacinas e guerras também não banalizam a violência? Por que Elle incomodou tanto, mais do que tudo isso que vemos todo dia?

Talvez porque Michelle volte a se encontrar com seu vizinho, agora sabendo que ele é seu agressor. Mas aqui, eu faria duas ressalvas. A primeira delas é que a vontade de Michelle de rever seu agressor não atesta que ela queria vê-lo naquele primeiro ataque. Não coloca-a como desejadora de um estupro tampouco como provocadora daquilo – ao menos aos meus olhos. A segunda é que talvez Elle falando de estupro e violência se pareça mais com Bastardos Inglórios do que A lista de Schindler falando de nazismo. O que está em questão é menos o drama psicológico vivido por Michelle. Michelle é uma personagem de ficção, uma heroína que aprende a lutar, que reina sobre todos os homens, que não tem medo nem do seu estuprador. Ela dirige, chefia uma empresa, não chora na morte dos pais, não fraqueja, nem mesmo depois de ter tido sua imagem exposta de todas as formas desde a infância. Ao descobrir que um dos seus funcionários fez uma montagem maldosa com o game desenvolvido e uma imagem do seu rosto, ela lhe pede “mostre seu pau”. O jovem, nerd meio bobo que trabalha numa empresa de games, abaixa sua calça. A câmera nos mostra ele de costas (como a vítima do ataque do game desenvolvido), constrangido,  Michelle olhando friamente para seu pênis e concluindo que ele não era seu agressor.

Podemos discutir, claro, as ambiguidades da relação da protagonista, que mantém uma relação com seu agressor mesmo depois de descobrir quem ele é. As ambiguidades do desejo dela, o estranhamento que suas ações nos trazem. Mas, a meu ver, quando terminamos o filme não estamos diante de uma vítima que legitimou seu estupro, mas de uma heroína que dominou tudo aquilo que poderia fragilizá-la. Lembremos que seu ex-marido é sensível e chorão, seu ex amante termina o filme bebendo desolado ao ser largado pela esposa, seu funcionário super agressivo não a amedronta, seu filho tem um emprego péssimo, lhe pede ajuda para pagar o aluguel e vive levando bronca da namorada. Os homens, no filme, são todos uns bananas, uns fracos. E as mulheres, todas fortes. Lembremos também que os homens todos se preocupam com o fato dela ter sido estuprada, parecem ter uma sensibilidade maior do que a dela. E que seu estuprador morre porque seu filho, um viciado em X Box, entra no jogo e dá uma paulada em sua cabeça. Mas – e isso me intrigou muito – ao ver o que fez e ver o sangue sair da cabeça do agressor da sua mãe, o moço chora. Um viciado em games chorão que se sensibiliza com a violência e com a morte.

Queria entender melhor a presença do catolicismo no filme todo. Nas imagens do Papa na televisão, na religião da sua vizinha que, apesar de doce e super devota, lida com um sorriso no rosto e serenidade com a morte do marido – o homem de alma atormentada que Michelle soube cuidar, como ela mesma diz, revelando que sabia que o marido atacava Michelle – no crime do pai, no espanto do filho de Michelle (ao falar do papa descalço, uma figura daquelas aparecendo como um homem qualquer). Michelle me pareceu uma heroína construída num mundo de Sade e de outros autores que falam menos de sexo e mais da falta de limites de um mundo em que tudo pode acontecer. Não é curioso que uma esposa católica aceite com tranquilidade um marido estuprador e um pai religioso seja um serial killer? Se você entendeu mais sobre a presença do catolicismo neste filme, por favor, comente, estou intrigada.

Para mim, a arte não opera só mostrando a realidade como ela é, mas fazendo torções, realizando na tela o irrealizável fora dela. Elle me pareceu mais uma resposta à cultura do estupro, da violência, à barbárie praticada pela mídia, do que uma parte disso tudo. Não tenho dúvidas de que as mulheres são vítimas de machismo todos os dias, mas às vezes me pergunto se o lugar de vítima não se tornou o único lugar de discurso feminista possível, o que eu acho uma grande de uma roubada. Michelle, que recusa o lugar da fala confessional, da queixa, da fragilidade, é uma anti vítima por excelência, e se não é isso de forma alguma que espero ou exijo de mulheres que passaram por abusos, talvez seja isso que tenha me encantado na tela de cinema – que como um game, não precisa ser o retrato do mundo, mas uma grande interrogação sobre ele.

 

 

A internet, não tenho dúvidas, é um instrumento importante para iniciativas diversas; Uma delas é a divulgação de trabalho de pequenos produtores e profissionais autônomos. Conheço muita gente bacana que conseguiu montar seu negócio divulgando o trabalho nas redes sociais e não tenho dúvida que a possibilidade de falar para muitos sem gastar muito dinheiro democratizou em alguma medida o acesso à propaganda. Enquanto na tevê, só grandes marcas conseguem anunciar, no facebook e no instagram, basta fazer uma conta (pagando, é claro o preço de ter a vida nas mãos do Zuckerberg, mas isso é tema pra outro post). Hoje, no entanto, eu queria falar do reverso desse fenômeno, que venho observando em grupos do facebook.

Desde o início do ano, amigos me colocam em grupos de compra e venda, Basicamente: grupos com milhares de pessoas em que é possível buscar ou anunciar algum serviço ou produto. Estar nesses grupos poderia ser uma experiência sociológica. Como sou mais curiosa do que pesquisadora em sociologia, relato aqui dois acontecimentos recentes que presenciei antes de falar do mais importante: dots, o grupo do facebook que é na verdade uma rede afetiva.

Há poucas semanas vi uma moça jovem, mãe solteira, contando que fez uma encomenda grande de brigadeiros e levou o cano de quem havia encomendado os doces. Sua sorte é que uma outra pessoa se interessou e comprou os brigadeiros.

Recentemente vi uma menina que fez uma tatuagem que não parecia nada com o desenho pedido. O problema? Era uma tatuadora que ela conheceu no facebook. Não tinha estúdio direito, não tinha nota fiscal, não tinha nada que comprovasse a relação de contratação de serviço. E, por isso, seria muito mais difícil processá-la pedindo uma indenização.

Conto esses dois casos para ilustrar a complicação destas redes de contatos e de relações informais de trabalho. Tanto o cliente quanto o produtor/profissional que oferece um serviço ficam desprotegidos, sujeitos a canos, calotes e serviços malfeitos. O mais esquisito é que, quando os casos são relatados nos grupos, são iniciados verdadeiros júris populares. O relato é comentado por centenas de pessoas que se posicionam contra ou a favor de quem não fez bem o serviço/não foi um bom comprador. A pessoa que errou, claro, costuma se tornar uma vilã, xingada, amaldiçoada e banida do grupo. A pessoa lesada recebe conselhos diversos, porque nesses grupos há um leque grandes de posições políticas e há quem diga que “no mercado é assim mesmo”, assim como há comentários que afirmam “aqui devemos fazer diferente”.

Nessa linha do fazer diferente, surgiu o dots, uma rede que tem um grupo no facebook no qual fui colocada. Hoje, curiosa, fui ver do que se tratava. Deparei com um post inicial que ensinava as regras para postar no grupo. Uma vez que ninguém desautoriza que eu publique o texto fora da rede, deixo aqui alguns trechos das regras:

O dots é uma rede AFETIVA. Estamos aqui reunidos para que o dia-a-dia de todos seja melhor. Para tanto, escrevemos com GENTILEZA e não tratando a rede como se fosse um painel de anúncios classificados. (…) Depois da saudação, apresentar-se como PESSOA. Não adianta jogar no post seu produto ou o que você faz pois o dots é uma rede na veia da ECONOMIA COLABORATIVA e COLABORAÇÃO só acontece onde existe CONFIANÇA e confiança se constrói com RELACIONAMENTO. (…)A sua história é super bem vinda (assim como a história da sua atividade). Chama-se “Storytelling” e isso faz você e seu negócio serem únicos. (…) EXEMPLO ERRADO:
“CORTINAS SOB MEDIDA, 100% ALGODÃO, estampas exclusivas. SUPER PROMOÇÃO pague 2 leve três.
Curtam minha página (…)FEEDBACKS POSITIVOS são super bem vindos pois elevam a energia da rede. A energia negativa e a frustração dominam a vida de muita gente. O dots é um refúgio.

Vamos lá.  O dots não é uma rede de classificados. É uma rede afetiva. Isso mesmo. AFETIVA. Para mim, rede afetiva é minha família, meus amigos, meus contatos de trabalho de longa data com quem já construí junto coisas boas. Não um grupo do facebook que reúne gregos e troianos em pleno 2016. Na internet, palco de muitos conflitos e agressões, acho esquisito um grupo que se una por motivos profissionais/comerciais e que se proponha a ser uma rede afetiva. Não tenho dúvida de que é possível uma convivência pacífica entre pessoas cujas crenças e ideologias divergem. Recuso-me, no entanto, a construir rede afetiva com fãs do Bolsonaro, homofóbicos, racistas etc..

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Digitei rede afetiva e o google me deu essa imagem, sem brincadeira.

Mas como é uma rede afetiva, não uma rede de contatos de trabalho, as pessoas não podem simplesmente postar “vendo sofás com estofado de couro”. Porque é impessoal, sabe? É frio, é distante, é seco. Embora, todos saibamos, é isso mesmo! Eu não amo o dono da Samsung e ele não faz parte da minha rede afetiva, ele produziu o computador que eu comprei. Eu não sou amiga do dono da Parmalat, embora às vezes eu consuma produtos deles. Eu odeio a Nestlé, mas às vezes eu acabo consumindo coisas da Nestlé. E ainda que esses produtores todos dessas redes não sejam grandes empresários ou industriais, não detenham meios de produção, não sejam donos de boa parte do PIB do país, a minha relação com eles não é uma amizade. Porque o grupo não se chama “camaradas”, “tinder da amizade”, “gente feliz”. O grupo existe, no fim, para as pessoas conseguirem produtos e trampos. É isso.

Mas é feio dizer isso. É cruel. Por quê? Talvez porque seja a realidade nua e crua. Tá todo mundo ferrado e bora vender tênis, aula de cross fit e copo sustentável até a morte porque as regras da aposentadoria vão mudar. Bora se arriscar e vender bombom recheado em grupo do facebook sem a garantia de que o cliente vai pagar a encomenda porque os gastos sociais no Brasil serão congelados e a gente vai ter que pagar convênio de saúde. Bora trampar sem contrato de trabalho e anunciar alpargatas coloridas num grupo do facebook porque só o salário não tá dando para pagar as contas. Antes que me entendam mal: acho bem interessante que haja gente fazendo roupa, comida, livro etc. em pequenas empresas, porque esse pode ser um caminho interessante para pararmos de fortalecer grandes corporações, marcas de shopping com trabalho escravo. Meu ponto não é que essas pessoas existam e façam o que façam, minha crítica se dirige ao discurso de administração desta rede.

Como falar que estamos todos ferrados e mal pagos não combina nada com relações de compra e venda, existe a forma apropriada pra se apresentar. Que nada mais é do que uma estratégia de marketing. Que a Natura, a C&A e a Vivo também fazem chamando mulheres, negros e trans pras suas propagandas, porque eles perceberam que isso comove. Porque eles viram que falar de empoderamento aumenta as vendas (novamente, vejo um lado bem interessante desses comerciais também). Então a gente copia, mas copia dizendo que não tem nada a ver com isso. Que a gente acha bonito pintar jogo americano a mão sentindo o frio na espinha de quem não sabe se vai dar pra vender tudo e pagar a luz e a internet do mês. E que pra venda ficar boa mesmo, a gente conta a nossa história de vida. Isso. A nossa história de vida. Há uns dois anos li um artigo do Robert Kurz comentando a questão de gênero e o capitalismo. Ele percebia que os afetos, antes presentes da gestão do lar – feita pelas mulheres – agora estavam presentes no mundo do trabalho. Ser carinhoso, ter equilíbrio emocional, sorrir, tudo isso entrava no pacote de atributos de quem trabalha. A meu ver, Kurz não parecia gostar, mas indicar a nova faceta do capitalismo, que ao se apropriar de elementos domésticos/familiares, criava mais uma camada de exploração dos trabalhadores.

Lembrando desse texto e lendo as histórias de quem anuncia nesses grupos, fiquei pensando que esta rede afetiva, que parece se apresentar como uma reação contra o mundo cruel em que vivemos, nada mais é do que um fruto desse mundo. Seus participantes, claro, talvez estejam começando um caminho interessante de quebra do monopólio de grandes empresas. Mas sua administração segue a cartilha do capitalismo atual. Exige sorrisos, carinho, storytelling e – pasmem! – pede que os posts não contenham os preços dos produtos [afinal, faz parte do fetiche da mercadoria do mundo atual que ela se pareça mais um carinho, uma amizade, uma experiência, do que uma mercadoria – esse é o feitoço atual..o Itaú é seu amigo, a Unimed cuida de você, a roupa da Hering te abraça, o chinelo da havaianas te dá férias].

Pensar redes alternativas que seguem à risca as regras das grandes empresas e convocar as pessoas a se apresentarem sendo fofas e simpáticas me parece cretino. No final de 2016, é muito justo que as pessoas estejam bem irritadas, com medo, inseguras, e que tudo o que elas queiram ao trabalhar é receber dinheiro para pagar as contas. Eu não dou aulas pra fazer ninguém feliz e não sou uma amiga de quem quer falar francês. Eu sou uma professora oferecendo um serviço. Mas falar isso vende menos do que se eu falar que minha missão neste mundo é ensinar e criar diálogos delicados em que haja troca e amadurecimento, não é mesmo? O que eu quero dizer pra quem banca esse tipo de iniciativa (não estou incluindo os participantes, gente como a gente querendo se sustentar): enfiem o storyteelling no bolso pras duas mãos ficarem livres na hora de protestar nas ruas. A gente não precisa de rede afetiva, a gente precisa de uma rede política. A rede afetiva não vai barrar o que está sendo feito no Brasil, a rede política talvez. A ideia de uma rede afetiva surge, parece-me, como reação a um estado assassino, perverso e omisso (vejam o caso do Índio, morto no metrô de sp). Com um estado que não fosse assim talvez a gente não precisasse chegar a esse alto nível de exploração que exige de nós mais do qualificação profissional. Exige que a gente coloque à venda nosso carinho e nossa simpatia. Pesado. Feliz 2017 – num tom machadiano para quem segue defendendo projetos do capitalismo humanitário e num tom sincero para quem ainda acredita na luta de classes.

 

ps: como diria Valeska Popozuda, o meu sensor de marxismo explodiu.

 

 

 

 

Em julho deste ano, fiquei sabendo que o seriado Gilmore Girls ganharia 4 episódios especiais na Netflix. Escrevi este texto no site de amigos comparando a série que marcou minha adolescência com Girls, seriado recente. Acabei falando também do fenômeno dos youtubers.

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Esse post de agora dialoga com o texto anterior, mas grosso modo, o que eu tentei fazer em junho foi comparar as duas séries. Parece-me que em Gilmore Girls, realizada no início dos anos 2000, havia uma estabilidade totalmente perdida em Girls. Rory era a menina prodígio que terminava a última temporada como jornalista formada em Yale e conseguia um ótimo emprego. Em Girls, todas as temporadas mostram as trajetórias de jovens de Nova York que possuem bons currículos, mas não se encontram nas suas profissões e fazem muitos bicos. As histórias amorosas das duas séries também são bem distintas. Rory perde sua virgindade de forma super romantizada e tem sucessivos namoros, todos eles com declarações de amor e cenas de choro. Em Girls, ainda que haja histórias de amor, as relações casuais e confusas e as cenas de sexo menos idealizadas são frequentes. Fazendo essa comparação, acabei falando dos youtubers, que ganham a vida expondo sua intimidade e fazendo merchandising – isso tudo dá pra ler no link acima. Sem mais demoras, vamos ao que interessa: o que foram esses 4 novos episódios de Gilmore Girls.

Comecemos pela polêmica recente: ao saberem dos novos episódios, muitas fãs começaram a afirmar que Gilmore Girls havia sido um seriado feminista. Desconfio que essa afirmação não foi feita do nada. Nos últimos anos, pelo menos no Brasil, vi muitas mulheres aderindo ao feminismo, muitas campanhas, sites, aplicativos, blogs dedicados ao assunto, manifestações grandes contra medidas como as propostas pelo Eduardo Cunha (proibir a pílula do dia seguinte) etc. Essa onda feminista foi tão grande que hoje grandes marcas fazem campanhas falando do assunto. Outras minorias, antes menos presentes em campanhas publicitárias e mesmo em discursos de esquerda, também ganharam mais espaço (ainda que isso não signifique, nem de longe, o fim das opressões no Brasil): negros, trans e gays também passaram a ter mais voz e também aparecem em propagandas como as do Boticário. Nesse contexto, começou a história de que Gilmore Girls era feminista.

Fica aqui a minha modesta opinião: não! Um seriado que mostra uma mãe solteira que batalha a vida em plenos anos 2000 não é feminista. Quantas mães divorciadas, inseridas no mercado de trabalho, com vida sexual ativa e opinião própria havia há 16 anos? Que eu me lembre, muitas. Se pararmos para pensar, Gilmore Girls era uma série bonitinha, que mostrava a relação forte de uma mãe e de uma filha de classe média numa cidade em que tudo se passava muito bem (sem violência ou desigualdade social). Não havia nada de questionador ou subversivo. A virgindade de Rory, que era uma preocupação para sua mãe Lorelai, aliás, mostra que a lente do seriado não era lilás. A ausência do pai de Rory nunca foi um tema enorme nas temporadas e não aparecia como denúncia de um mundo em que mulheres fazem dupla jornada de trabalho e sustentam filhos sozinhas. Em vez de uma denúncia política, havia ali uma justificativa pessoal: Lorelai escolheu aquilo porque era aquilo que ela queria. Ela quis cuidar da filha sozinha. Foi ela quem afastou seu ex marido e decidiu pagar tudo – situação muito diferente da maioria das mães divorciadas que conheço. Além disso, vale lembrar que as outras minorias que ganharam mais espaço de fala nos últimos anos quase não existiam no seriado. Havia uma personagem negra e gay – Michel – ninguém muito pobre – Dean e Lane, que cresceram na cidade de Rory, mas não tiveram avós ricos para pagarem uma universidade cara nunca se revoltaram contra esse sistema das universidades americanas – e todos os temas de conversas sérias ou piadas tinham como conteúdo aquele mundo encantado de Rory e Lorelai. Vi textos mostrando que Lorelai era uma mulher batalhadora – e quem sou eu pra contrariar? – mas lembro que o seriado mostra a vida profissional de Lorelai e a vida acadêmica de Rory que só são possíveis graças ao dinheiro dos pais de Lorelai, casal super rico. Eu fui muito fã, mas não consigo ver todo esse feminismo ou engajamento que estão sendo vistos na série.

Mas chega de polêmicas de redes sociais. A temporada nova teve 4 episódios e, a meu ver, o melhor deles foi o segundo (a partir daqui tem spoiler). Rory se formou e arranjou um baita emprego. Acontece que agora, em 2016, as coisas não vão tão bem assim. Apesar de escrever como ninguém, ter uma ótima formação e excelentes referências, ela vive de freelas mal pagos, viajando de cidade em cidade e se hospedando na casa de familiares e amigos. Logan, seu último namorado da parte antiga da série, com quem ela decidira não se casar, mora em Londres. Os dois possuem uma relação que lembra mais os relacionamentos de Girls. Logan vai se casar com uma moça rica e tudo indica que o casamento é um grande negócio (o pai de Logan, lembremos, é riquíssimo, e quer casar bem seu filho). Ele gosta de Rory e ela gosta dele, mas agora eles não vivem mais um namoro romântico como na Universidade. Escondidos, sabendo que há outras pessoas em suas vidas e que eles não terão uma linda casa com lindos filhos, os dois se encontram, não sem algum incômodo de Rory, que não pode vê-lo ou ficar com ele quando quiser.

O segundo episódio me pareceu incrível e angustiante porque mostra Rory nessa relação -sem nome, sem garantias, esquisita e sem um futuro muito agradável – na sua saga em busca de emprego. A moça é chamada para escrever um livro sobre uma mulher muito conhecida em Londres. A mulher é uma celebridade muito instável, de gênio difícil, que combina o trabalho, mas não dá nenhum contrato à jornalista. Por que ela é uma celebridade? Não sabemos. Como muita gente famosa de hoje em dia, a figura polêmica parece importar mais do que sua obra. Rory lida com a instabilidade emocional desta estrela inglesa até ser dispensada sem ter ganhado um centavo. Ao tentar conseguir uma vaga num grande jornal, a jovem de Stars Hollow é incumbida de escrever uma matéria (obviamente não paga, afinal, ela deve mostrar seus talentos para depois ser contratada) sobre filas. Em Nova York, visita esse fenômeno que combina com a celebridade que a dispensou: jovens que acordam cedo e enfrentam filas quilométricas. Para onde levam essas filas? Para lojas. Uma padaria nova e seu cronut (croissant com donut, supra sumo da pâtisserie pós-moderna), a nova edição de um tênis, um encontro de adultos que fazem cosplay de desenhos animados, Senhor dos Anéis etc. Nesse encontro, aliás, Rory faz o que não fez em anos do seriado na sua versão antiga: tem uma noite de sexo casual com um adulto fantasiado de algum herói infantil – uma das melhores metáforas, eu acho, para falar do mundo de hoje, ainda mais quando o cenário é Nova York: onde dormem mais pessoas na rua do que em São Paulo (sim!) e os efeitos da crise de 2009 ainda são aparentes (frase anterior), pessoas que acordam muito cedo para pegarem uma fila e consumirem antes de trabalhar e que vivem as alegrias de uma fantasia de um mundo inexistente (por exemplo Harry Potter). Nesse mundo, Rory, uma boa jornalista que adorava literatura, não tem muito lugar. Sua tentativa final de trabalho no segundo episódio é aceitar um emprego num site de fofoca que convidava-a para ser uma integrante da equipe há muito tempo. A cena seguinte todo mundo já vivenciou: um prédio moderno, uma redação com cadeiras coloridas e na qual ninguém tem lugar fixo. Um cenário que nos faz pensar em palavras como workshop, start up, social media etc. Só gente jovem, com roupas informais. A editora informa Rory que lá não há mais essa ideia de hierarquia na empresa – e em seguida caneta o texto de uma das suas subordinadas. Em seguida, pergunta à jovem: diga-me por que vale a pena termos você aqui. Rory fica confusa  – não eram eles que há um ano insistiam para que ela trabalhasse no local? A entrevista é uma lástima, a empresa não a contrata e o episódio termina com a moça triste, voltando a morar na casa da mãe.

O mérito dessa reedição de Gilmore Girls está, para mim, neste final do episódio 2. Único episódio em que eu, aliás, me identifiquei com a série e entendi o que a Rory passava. Vi na Rory minha vida e a de muitos amigos: pessoas estudiosas que querem trabalhar e são mal pagas, não têm vínculo empregatício, fazem trabalhos horríveis para poder pagar as contas, sofrem ao pedir ajuda aos pais. Destaco aqui também a personagem Paris, amiga de Rory na Universidade. Formada em várias faculdades e trabalhando numa clínica cara de barriga de aluguel, ela sofre com o divórcio recente e a dificuldade de criar filhos. Apesar de dona de uma casa enorme e sem problemas financeiros, ela confessa a Rory que anda com uma mala que na verdade está vazia, só é usada para que as pessoas respeitem seu trabalho. O vazio da mala parece o vazio da sua vida – trabalhando muito, dona de uma casa, mãe, mas ainda assim extremamente confusa e infeliz.

Os dois últimos episódios da série  não funcionaram muito para mim. Tive a sensação que eles tentam restaurar todo o mundo perfeito de Gilmore Girls, estilhaçado no episódio 2. Lorelai tem uma pequena crise conjugal e sofre no trabalho, mas tudo se resolve. Rory, sem emprego, decide escrever um livro sobre a sua história com a sua mãe. Adivinhem o nome do livro? Gilmore Girls (oi, seriados americanos, isso já aconteceu de forma bem parecida em Dawnson´s Creek, vamos melhorar essa saída metalinguística de quinta, por favor?). Depois de romper com Logan (o ex-atual da relação sem nome), Rory visita o pai (que em algum momento dos episódios antigos ganhou uma herança e ficou rico) e conversa sobre a vida dela longe dele, sobre o que ele achava disso tudo. Última cena do último episódio: Rory conta pra sua mãe que está grávida. Para quem não sabe: Lorelai foi morar em Stars Hollow com a Rory pequenininha. Fugindo da família rica, ela chegou jovem na cidadezinha onde fez a própria vida com Rory. Conclusão pouco complexa: Rory vai ficar na cidade encantada de Stars Hollow e repetir a história da mãe – a mãe se casou com Luke, dono da lanchonete da cidade, e provavelmente Rory ficará com Jess, escritor, mas sobrinho de Luke!  Vai criar seu filho longe de Logan (o pai rico que casará com uma moça rica e gerirá as empresas da família) e terá com seu bebê uma relação intensa, cheia de amor e histórias que poderá virar o livro Gilmore Girls parte 2.

Sobre o título deste post: Gilmore Girls entrou no ar no mesmo momento da morte do Fidel Castro. Não me entendam mal nem me xinguem, mas eu fiquei relacionando os dois fatos e pensando como Stars Hollow e Fidel Castro morreram juntos e o que isso significa para a minha geração – e para os mais novos que, desconfio, estão tão ou mais ferrados do que eu. Não vou aqui entrar na discussão de Fidel assassino (sim, ele mandou matar gente) e ditador. Vou falar sobre uma das muitas coisas que a figura de Fidel representava: a revolução. Existe palavra mais bonita que essa? Muita gente da minha geração cresceu vendo Gilmore Girls. Às vezes acho que junto com o sonho de Stars Hollow – um mundo seguro e bonito, com gente feliz e namoros e empregos dando certo no final – também tivemos o sonho Fidel Castro: a revolução, não mais como horizonte, mas como passado já realizado. E mesmo no Brasil, em que nunca houve revolução, havia a sensação de que o pior tinha passado, que a ditadura era coisa vivida pelos nossos pais e que algumas coisas não voltariam nunca. Para esses sonhos do passado eu só digo quatro números: 2016.

O final de Gilmore Girls é absolutamente fake. E não é só fake porque mostra pessoas brancas, apoiadas por famílias com muita grana, numa cidade inexistente onde tudo vai bem. Ele é fake porque Rory tem a minha idade e, ainda que ela se esforce muito, não vai ter uma vida igual a da sua mãe. Porque os Estados Unidos sofreram a ação do tempo, porque quando ela se formou o presidente era o Obama e agora temos Donald Trump, porque seu sonho de jornalista (que não existia na sua mãe) está bem frustrado e porque junto com a palavra revolução, há outra que ficou fora de moda: emprego. Gilmore Girls era e é uma ilusão, não uma possibilidade do que o mundo pode ser, mas uma compensação do que o mundo já era: essa é a função da indústria cultural, não? Fidel era o símbolo de uma utopia de fato: há um lugar no mundo em que nenhuma criança dorme na rua (não estou aqui fazendo um elogio cego à Cuba, mas estou lembrando um fato inegável). Aos meus amigos que leram esse post enorme: não vai ser fácil.

A quem chegou até aqui e faz piadas sobre quem se diz de esquerda/comunista/socialista, a resposta que eu gostaria de dar esse ano todo: concordemos que a União Soviética ou a China estão longe de qualquer projeto de mundo melhor e entendamos que eu, ao menos, que sigo me declarando de esquerda, não penso nesses modelos. Agora me responda: você não sente falta de mais férias? Você não tem uma sensação constante de cansaço que não passa nunca? Você não fica meio p da vida quando boa parte do seu salário paga convênio de saúde, remédios, contas altas do supermercado e não sobre quase nada pra viajar? Você não morre de medo de perder o emprego e não conseguir mais nada, porque já tem uma certa idade? Você não acha estranho que uma boa parte da sua vida é o que vive quando consegue parar de trabalhar? Você não se apavora pensando no futuro, na sua velhice, no medo de morrer na miséria, sem ninguém te ajudando? Não é irônico, também, que você prefira sábados a segundas-feiras e sua vida tenha muito mais dias como segundas do que como sábados? Você não se assusta ou se chateia pensando que às vezes você paga um baita condomínio ou sucessivas corridas de táxi/uber à noite porque você quer segurança, porque dá medo viver numa cidade cheia de moradores de rua e pessoas miseráveis que podem te assaltar?  Você não fica bem irritado ou irritada quando liga no número da operadora de celular, aquela pra qual você paga caro todo mês, e ninguém te ajuda? E você já parou pra pensar que as pessoas que você xinga no telefone são trabalhadoras que ganham, provavelmente bem menos que você, pra ficar numa sala apertada fazendo um trabalho cuja formação foi horrível? Já parou pra pensar que o erro que elas cometem ao pronunciar seu sobrenome não é bem culpa delas, porque elas não puderam ter uma educação decente? E já parou pra pensar como seria melhor um mundo em que todo mundo pudesse aprender em escolas boas? E nos bancos que você tem conta, já te sacanearam? Já te cobraram taxas erradas ou quase ferraram sua vida? Já te deixaram duas horas esperando? E daí você lembra que no Brasil o governo paga juros beem altos pra esses mesmos bancos que ferram com sua vida, mas que agora você vai ter que trabalhar mais pra se aposentar porque ninguém quer pagar menos pros bancos e quem vai pagar o pato (fiz a piada irresistível!) é você? Você, no fim das contas, já parou pra pensar que eu, que me digo de esquerda, não penso em paredão, hipo consumo, ditadura (que também pode ser de direita, só pra te lembrar), mas apenas num mundo em que as pessoas possam trabalhar menos, ter acesso a saúde e educação públicas decentes, sofrer menos por causa da falta de dinheiro, ter menos medo da velhice, ter menos esse frio na espinha constante de ficar sem trabalho e sentir menos esse gosto amargo que a gente destrói nossa saúde todo dia enquanto uma elite bem pequena está viajando pelas ilhas mais bonitas do mundo todo?

Os quatro episódios estão lá. E se não há mais a palavra revolução, há a distopia do segundo episódio e a ilusão do episódio final. Se escolher ficar com a segunda opção, que te custou aqueles reais da mensalidade da Netflix, lembra de uma coisa: que a gente não é a Rory, não tem pai e avó ricos, não vive numa cidade encantada e não vai criar nossos filhos num mundo feliz e sem violências. E que pro cenário do segundo episódio, que é o nosso, e vai ser o nosso por muito tempo, a gente pode até recusar o Fidel com todo seu lado horrível, mas seria bom lembrar que há, em algum lugar da América, uma ilha em que ninguém mora na rua e ninguém passa fome.

 

[Eu sei que era pra ser um texto sobre um seriado, mas como disse um amigo meu, citando Antonio Candido, meu grau de marxismo varia conforme a conjuntura, e atualmente ele está altíssimo].

Conhecemos a história Um Bonde Chamado Desejo. E se não conhecemos, recebemos um pequeno roteiro na abertura da peça Blanche, de Antunes Filho, e somos aconselhados a lê-lo. Nove cenas que descrevem sucintamente a história criada pelo dramaturgo Tennessee Willians, em 1947, e transformada em filme pelo diretor Elia Kazan em 1951. Estamos diante de um clássico, recontado e reencenado muitas vezes nesses quase 70 anos de sua publicação. Na fala inicial, a atriz que abre a peça nos passa essas recomendações e nos explica que a peça será falada em fonemol, língua inventada por Antunes. Cabe a nós, expectadores, inventarmos nossa própria dramaturgia. Depois dos 5 minutos deixados para que leiamos o pequeno roteiro, a mesma atriz volta. Agora já não estamos diante de alguém que fala nossa língua.

Que língua é essa que nos escapa? No início, algo nos lembra o russo. Mas bastam umas poucas falas para que outros idiomas nos venham à cabeça. Stanley às vezes fala com a entonação de um brasileiro, embora traga uma braveza espanhola em alguns de seus atos. Blanche tem frases na cadência francesa. Stella e suas vizinhas nos lembram o italiano carregado. Vez ou outra, aparece-nos um som familiar: Blanche, Stanley, Stella, Eunice, Mitch, virgem, capricórnio, Código Napoleônico, coca-cola. São pequenos ganchos que nos situam no fluxo estranho do fonemol para depois nos jogarem de novo naquela língua desconhecida. Somos todos estrangeiros: nós, inventando conteúdos possíveis para algo que desconhecemos, e elas, as personagens, reencenando um clássico que conhecemos, mas tornando-o inapreensível.

Fonemol é um murmúrio. Língua cantada, cuja entonação da voz das personagens e o conjunto de gestos nos guiam para tentativas de compreensão do que está sendo dito. Diante dos diálogos, preenchemos as falas com conteúdos imaginados. Estará Blanche reclamando da precariedade da casa de Stella? Que nomes Stanley dá à cunhada que chegou? Quais frases Stella escolhe na tentativa difícil de conciliar o marido e a irmã mais nova?  Entendemos toda a peça. E no entanto, ela permanece um mistério. Nosso texto se arrisca, mas nunca nos autoriza a traduzir aquele significante. Na melhor das hipóteses, diríamos que tudo se passa como se, esse clichê que poderia ser legenda de toda obra de arte. Tudo se passa como se as personagens dissessem isso ou aquilo. Mas nada, nada nos autoriza a ter certeza disso. Estamos no terreno movediço da obra.

Nossa linguagem cotidiana tem, como notaram os leitores apaixonados do poeta Mallarmé, função de moeda de troca. Usamo-as para tomar posse e designar objetos e seres. Pois mesa é um som que faz alusão à mesa da qual falamos. E feio, bonito, fascista, imbecil, são nomes que damos para determinar algo que nos aparece. Palavras no seu uso corrente nos dão essa ilusão: conseguimos determinar o indeterminado que é o outro. E outro é tudo: os objetos, as pessoas, os fenômenos da natureza e tudo o que se apresenta fora de nós. Este uso empobrece a linguagem, cuja plasticidade é substituída por um sentido cristalizado. É isto e não é aquilo. Engessada, é ela que proferimos no dia a dia em que o mundo se apresenta como pronto, fixo, imutável.

Mas o mundo nunca está acabado. O mundo, fazendo uma leitura sem muita responsabilidade de Nietzsche e de muitos que vieram depois dele, é um livro falado em fonemol. Podemos conhecê-lo de fato? Provavelmente não. O que chega até nós é este murmúrio. Palavra cantada, conjunto de sons que não nos oferecem nada de fixo. Stanley e código napoleônico são indícios. Durante a peça, eles nos fazem sair da obra e voltar à terra firme das coisas que podemos nomear. Mas a obra ainda está ali e o murmúrio desconhecido volta, estremecendo nossas certezas.

O fonemol estremece, mas também nos traz a reminiscência de algo que a cultura nos fez perder. Sem sabermos o significado de cada palavra, olhamos melhor os corpos. Sua dança, suas hesitações, sua fúria. E ouvimos a voz, lembrando que também ela é capaz de dar sentido a este enigma que é o mundo. Na peça, temos a impressão de ouvir a mesma frase muitas vezes e de, no entanto, ouvirmos coisas diferentes. O que determina a carga da mesma frase  é a maneira como ela é dita. Blanche e Stanley podem dizer exatamente a mesma coisa. Mas nunca dirão o mesmo, uma vez que as palavras estão encarnadas em corpos distintos. Assim o corpo, que no nosso mundo explicado e fechado é só um portador da linguagem, volta a ser – como em todas as boas peças – parte dela.

Temos então o corpo de Blanche. Na peça de Antunes, Blanche é encenada por um ator e aparece em cena com o rosto pintado de branco, cuja maquiagem lembra um pouco um clown. O branco da face não é só alusão ao nome. Marca a diferença da mocinha recém chegada em relação às outras personagens: Blanche é um corpo estranho. Tennessee Willians publica a peça menos de dez anos após a morte de Freud. A psicanálise já não é novidade, mas o corpo feminino ainda é um escândalo. As histéricas enfim escutadas por Freud tiveram sua dor considerada. Mas são os anos 40 e as mulheres ainda não têm a liberdade que têm hoje. Hoje talvez seja forçado dizer que toda mulher precisa casar para sobreviver ou que toda mulher que frequenta o mesmo hotel com vários homens terá sua imagem arruinada.  Mas Blanche não é só todas as mulheres. Judith Butler diz que o feminismo não deveria ser só o movimento das mulheres, mas a luta em defesa de todos os corpos estranhos à norma. Os negros, os gays, os transsexuais, os refugiados. Corpos marginalizados, cujas palavras, longe de serem o murmúrio desconhecido da peça de Antunes, invadem e determinam: puta, viado, preto, traveco etc..

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A violência contra os corpos se dá na linguagem, mas não apenas. Tudo que é estranho à norma é violentado, estuprado. E aqui, não nos referimos só a essa atrocidade cometida contra mulheres, crianças e corpos frágeis há tanto tempo. O estupro, como coloca a citação presente no programa da peça, é “a representação crua e direta do exercícios do poder. Designa um denominador e organiza as leis do jogo para que possa exercer seu poder sem restrições” (Virginie Despentes, Teoria King Kong). Vivemos a cultura do estupro e consumimos uma cultura que, na sua essência, estupra-nos, como faz a coca-cola, grande símbolo dessa cultura que anula as particularidades de cada lugar se impondo como bebida universal, cujo nome se diz da mesma forma em todos os idiomas. Líquido corrosivo e viciante, representante da cultura de massas, desta produção anônima e devastadora que tenta, sem cessar, calar as vozes do fonemol.

O estupro de Blanche é, pois, o estupro que vai além da violência contra uma mulher. Estuprada, Blanche não consegue mais articular as palavras do fonemol e ouvimos, talvez, algo que precede a linguagem: vogal prolongada do grito de dor. Sofrimento que não tem nome, que a língua falada não alcança. E porque quase todos escapam aos ideais da norma, somos todos um pouco Blanche, e compartilhamos juntos essa dor inominável, guardando com a personagem essa posição de estrangeiros que não se aproximam. Não aproximação do estrangeiro: talvez a única maneira de manter a alteridade na sua radicalidade sem  submetê-la aos terrível poder da cultura e da linguagem.

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Ter assistido essa peça no dia em que o Ministério da Cultura foi extinto me provocou uma dor sem igual. Fica aqui minha aposta nessa arte murmurante que dribla a norma e nos faz experimentar o estremecimento do mundo. É ela que eu espero, como o murmúrio por vir nunca totalmente apreendido. Uma tímida esperança em tempos da palavra firme e violenta.

No ano retrasado, acho que no dia 23 de dezembro, li uma entrevista com nutricionista da USP que achei genial. Ela condenava essas dietas insanas que entram na moda, como aquela em que a pessoa fica só comendo proteína. Isso, só comendo proteína – não sei em você que está lendo, mas aqui dentro de mim eu sinto um vazio no estômago e vislumbro um dos círculos do inferno em que garçons sarados me oferecem barrinhas de Whey. Bom, pois é, essa nutricionista falava de dietas de gente como a gente, que não vivem só para malhar o corpo, e que são muito mais tranquilas. Achei que a entrevista merecia ser compartilhada e postei no facebook, incluindo a frase “melhor viver sem culpa do que viver sem glúten”.

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Melhor viver sem culpa do que sem glúten. Meu mantra, aquele tipo de frase que é como a presença de deus pros infiéis – você pode não acreditar, mas existe, está em você, existia antes de você. Passei a repeti-lo entre uma refeição e outra, nos três lanches da tarde que faço quando trabalho em casa, no sorvete que eu me permitia tomar nesses dias de calor tórrido em São Paulo, na pipoca doce caseira que virou meu vício em 2015. Ainda sigo deitando semanalmente no divã, trazendo à tona as mesmas questões, entediando a mim e a minha analista, a culpa sempre volta. Às vezes, num momento de distração, uma frase pouco usual me escapa, a analista já está preparada com seu chicote. Dá-me uma bela chicotada, depois me manda embora. Eu saio com lágrimas nos olhos, o chão parece tremer, minhas certezas vão ruindo. Ando duas quadras e dou de cara com um árabe sensacional, uma das melhores esfihas de São Paulo. Contra toda a angústia e preenchendo o vazio existencial: algumas esfihas. E o mundo volta a ser um lugar habitável. Melhor viver com culpa, mas também com glúten.

Acontece que eu sofro de enxaquecas. Há épocas em que elas somem, há épocas em que elas me dominam. E houve um ano – 2014 – em que eu, homenageando um dos títulos de Kafka (será que Kafka comia glúten? Pausa para outra visão de um círculo do inferno: insetos, ambiente sombrio, uma repartição pública, um processo com o meu nome, muito sofrimento, ausência de respostas. Vou ao corredor da repartição, não há uma máquina de café, um pote de balas, nada) eu me metamorfoseei numa enxaqueca. Eu a enxaqueca nos tornamos a mesma. E não havia pote de sorvete que me tirasse daquela crise. Fato é que o ano foi produtivo na análise, minha analista comprou até um conjunto de correntes para aprimorar as sessões,  e uma espada Hatori Hanzo para me dar cortes precisos, mas só a elaboração ali, no divã, olhando para a parede, não foi suficiente. Depois de dez anos da minha primeira crise, aceitei o que era repetido até em sabedoria de televisão do metrô: a alimentação tem tudo a ver com as suas dores.

Vamos colocar no repeat porque foi difícil aceitar: a alimentação tem tudo a ver com as suas dores. A alimentação tem tudo a ver com as suas dores, a alimentação tem tudo a ver com as suas dores, a alimentação tem tudo a ver com as suas dores, a alimentação tem tudo a ver com as suas dores. Ok.

Aceitar essa verdade, que tal como deus, já estava lá, embora eu a rejeitasse, me rendeu muita coisa boa. Parei o vinho tinto, diminuí o álcool em geral, diminuí muito o chocolate, cortei o shoyu. Digamos assim que eu subia o primeiro grau da escala Bela Gil. Foi bom, me colocou nos eixos e, com uma ou outra dica – que eu vou dar num post sobre enxaqueca que ensaio fazer há meses – melhorei muito. Então veio 2015, e 2015 foi muito lindo, porque com a cabeça sem dor e muita comida na geladeira, até que dá pra ser feliz.

Esse é o momento do mas. É aquele momento em que a mocinha e o mocinho da novela ficam juntos e aparece de repente a ex dele dizendo que está grávida. E a novela, que ainda tem muita caretice, transforma isso num motivo para o casal que todo mundo quer ver junto ficar separado. A vida tem rupturas mais interessantes do que a mocinha grávida, o vilão que chantageia alguém etc.. E a vida tem que ter rupturas. Nem que sejam bem pequenas. Porque se não tem ruptura, não vira história. Então se você, pessoa apaixonada pela estabilidade, praticante daquela mania chata de querer controlar tudo, não está gostando, deixa eu te contar: é preciso aceitar as transformações. Porque sem elas o roteiro da sua vida fica como a última novela do Manoel Carlos [se você não sabe o que aconteceu, busque aqui no blog, mas te adianto que coisa boa não é].

Então vamos lá. Até que dava pra ser feliz, mas na véspera do carnaval desse ano eu comecei a ter uma crise. E fazia muito calor. E o calor é um dos agravantes das enxaquecas. Mas vocês sabem que em fevereiro – em fevereiro – tem carnaval (tem carnaval), eu tenho um fusca e uma viola cantante blablabla whiskas sachê. E eu me vi diante de um grande conflito: querer aproveitar ao menos um pouco os blocos de rua e ter que lidar  om uma cabeça doendo, que não é muito fã de marchinha, multidão e bebida alcóolica.

Foi um momento difícil, irmãos. O superego me empurrou contra a parede e disse, tocando seu cavaquinho: Diz aí Natália, o que ce vai fazer? E quando eu já não sabia mais o que fazer, veio uma voz e sussurrou nos meus ouvidos o que consegui responder: eu vou tirar o glúten pra me defender (ela vai dar uma tapioca no cafézinho dela, ela vai dar o frango com batata doce no almoço dela, ela vai dar uma sopa de legumes no jantar dela, ela vai dar uma resposta pro superego dela). Ah, sim, a voz não era de deus nem do Walmor Chagas, era de um médico que sempre leio e que defende muito a cura da enxaqueca via alimentação.

Eu poderia ficar horas aqui contando detalhes inúteis da minha saga, mas eu prefiro deixar um recado final tipo portal da superação [noveleiros e noveleiras entenderão novamente]: viver sem glúten é muito bom. Mas é também um saco. Viver com glúten é muito bom. Mas é também um saco. [a propósito, falei isso na sessão de análise, a analista pegou a espada e disse “fazer escolhas é assim, Natália” e lá fui eu sair da sessão, mas dessa vez não teve esfiha. ] A grande vantagem desse cenário complexo da retirada ou não do glúten é facilitada pelo meu signo de ar – mudo muito as decisões – pelo meu ascendente em touro – se houver um incêndio, você salva o quê? O pudim que tá na geladeira. Passo temporadas sem glúten. A cabeça fica leve. O corpo também. Durmo melhor. A fome diminui – sem ironias. Se estou numa fase fitness  – mentira, eu nunca estou nessa fase, mas confesso que tenho tentado levar a sério a tal da musculação – , a barriga ganha definição mais rápido. Está tudo bem e eu até chego a me acostumar. Mas daí me acontece um imprevisto. Outro dia, por exemplo uma amiga me ligou e me contou uma história que me deixou apreensiva por ela. Desliguei o telefone, corri pra cozinha. Tinha semente de girassol, tinha pêssego, tinha gelatina, tinha barra de cereal. Também tinha um saco fechado de sequilhos. E só os sequilhos conseguiriam dar conta do meu nervosismo. Por sinal: melhor sequilho da minha vida. Então é isso. A vida pode não ter glúten. Mas isso significa a vida sem pão, pizza, bolo, nhoque, biscoito, casquinha de sorvete, quiche e pastel de feira. Aí vocês vão me dizer: mas hoje em dia existe até farinha de dinossauro. Mas. não. fica. igual. de. jeito. nenhum. E chega um momento em que só uma explosão de glúten salva.Só  uns 4 pedaços de pizza vão apaziguar sua TPM, só um cheeseburguer vai melhorar seu dia estressante, só uma lasanha vai aquecer seu coração, só um pão alemão vai te ajudar a terminar aquele artigo que não acaba nunca. E daí você vai se jogar e entender que nem todo pozinho branco e viciente precisa ser cocaína. Porque a vida ganha mais beleza com a farinha de trigo. Porque é impossível não sorrir depois de comer um croissant bem feito. Porque o bolo de brigadeiro sem glúten é uma heresia e deveria ser proibido por lei.

 

Então é assim que vivo agora, entre um extremo e outro, mandando Manoel Carlos pras cucuias: cada dia novo de dieta é um flash, mas no final da temporada rola uma panqueca. Para todas as pessoas que querem desfilar só com o tapa sexo no carnaval e aparecer no gshow. com existem dietas desumanas. Para todas as outras existe o rodízio do glúten da Madame Naná.

ps 1: ligue agora e receba em casa o cookie sem glúten, também conhecido como o pior cookie do mundo.

 

 

 

Ave, César!

São os irmãos Cohen, o que significa que, se houver filme, vou assistir. É como Woody Allen, Polanski ou, como o queridíssimo e não mais presente, Coutinho. Ou, ainda, como aquele ditado: sexo é que nem pizza, mesmo quando é ruim é bom. Discordo do ditado – sexo e pizza são sempre bons? – mas mantenho minha convicção de ver os filmes destes diretores que, aí sim, mesmo quando são ruins, são bons.

Ave, César! é bom, é hilário, é bem feito. O blog anda enferrujado e ontem, numa discussão no bar sobre a história, decidi fazer um post.

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Edward Mannix é um empresário responsável por todo o tipo de perrengue do estúdio Capitol Pictures, na Holywood dos anos 50. Enquanto ele corre de um lado pro outro, acompanhando todos os filmes e seriados do estúdio e trabalhando para manter a chama da indústria cultural acesa, recebe proposta de uma outra indústria que, sabendo de seus talentos, lhe oferece salário maior e estabilidade para que ele abandone o mundo do cinema. No meio da sua correria e da indecisão sobre mudar ou não de ramo diante da oferta feita, Mannix tem que resolver grande problema:  antes da gravação das cenas finais do filme Ave, César! o protagonista, o ator Baird Whitlock (que no filme é uma grande estrela e é interpretado pela grande estrela George Clooney), é sequestrado, comprometendo a mega produção.

[a partir daqui, tem spoiler]

Mannix trabalha para que a peteca não caia. E isso significa encobrir a gravidez da estrela interpretada por Scarlett Johanson – cuja imagem para os fãs é de pura e ingênua e não pode ser abalada por uma gravidez sem casamento – , escalar um ator de western (que sabe dar piruetas sobre um cavalo, mas é péssimo atuando) para um filme romântico, já que todos os outros galãs estão afastados porque fazem rehab ou coisas do gênero, negociar com as jornalistas gêmeas que competem, trabalhando em diferentes colunas de fofoca e estão ávidas por escândalos envolvendo atrizes e atores. Seu ramo é o ramo da farsa, da ilusão, da imagem que, para ser mantida intacta, custa negociações com atores, propina para a polícia etc..

O filme Ave, César!  (o filme dentro do filme) conta a história de um romano cético que se converte ao conhecer Jesus. Suas cenas, assim como as das outras produções da Capitol Pictures, reproduzem cenários e músicas da produção estadounidense dos anos 50. Não sem muito sarcasmo. Entre um riso e outro, descobrimos que Baird Whitlock foi sequestrado por um grupo de comunistas. Numa casa à beira mar, eles explicam Marx e assuntos relacionados ao galã de Holywood, que chega a simpatizar com a causa. O diálogo  e as ideias destes comunistas são tão caricatos quanto os cenários de Holywood.  Destaque para o Marcuse, que é patético – um amigo da Filosofia diz que, ao ler a escola de Frankfurt, acha que o Marcuse é aquele primo que nunca foi inteligente, mas que ganha melhor que os outros. Ponto pros irmãos Cohen, não falta bom humor para representá-lo no filme.

Um pouco como em O Grande Lebowski e Queime Depois de Ler, a história se amarra com elementos inusitados – o ator principal do musical sobre marinheiros extremamente clichê é, no fundo, um comunista que se une aos sequestradores de Whitlock para, enfim, ser levado de barco para a União Soviética.

Tudo é motivo de riso, tudo é representado de forma caricata: Holywood, o comunismo, o anti comunismo, a religião (pois o filme fala de Jesus, mas Whitlock, ao voltar enfim para fazer as últimas cenas do filme, esquece justamente da palavra “fé” em sua última fala). E, no entanto, Mannix consegue se decidir. A proposta de emprego que lhe ofereciam era um posto na indústria bélica (pós segunda guerra, durante a guerra fria!). Ao se confessar com o padre antes de fazer a decisão, e ouvir que deve seguir seu coração, Mannix decide pelo emprego que paga menos e deixa-o exaurido: a indústria do cinema. São duas indústrias, mas ele ainda opta por fazer a ilusão acontecer. Criar, com todos os poréns, em vez de destruir. Vi neste final a escolha dos irmãos Cohen: é uma indústria exploradora, ridícula, falsa, que produz ilusões, mas, ainda assim, é nela que ficamos, rindo um pouco de tudo e mantendo a acidez que nos é própria. Ave, César! é mais uma prova disso.

 

 

ps: uma analogia forçadíssima, mas que não posso deixar de fazer. O filme me lembrou algo de A Rosa Púrpura do Cairo e Hannah e Suas irmãs, do Woody Allen. Nada tem explicação, tudo está uma droga, mas o sentido da vida, da existência, é dado pelo cinema.

Há pouco menos de um ano publiquei este texto aqui. O título era “Girls don´ t cry”. Ontem decidi revisitá-lo e reescrevê-lo. Publico-o modificado e cheio de lacunas que ainda não sei como preencher.

Estive uma vez no hospital da Salpêtrière, em Paris, no ano de 2009. Não fui até lá para visitar a instituição presente nos escritos de Foucault. Na verdade, precisava de um médico: tinha passado a noite de inverno com uma terrível dor de ouvido. Fiquei impressionada com o tamanho do complexo hospitalar, vaguei pelos prédios sem achar a unidade em que poderia ser atendida e desisti, levando comigo o mapa que ganhei para me localizar lá dentro. Devo tê-lo numa pasta com lembranças da França. Um dia mostro para algum amigo filósofo, pensei.

Há alguns meses, descobri que Freud esteve também na Salpêtrière, onde assistiu as aulas de Charcot. Se eu soubesse disso na época, teria tirado algumas fotos. Não é qualquer hospital que já foi a sede dos mais famosos espetáculos de hipnose e histeria.

Um ano depois daquela dor, descobri que tinha uma espécie de tumor em um dos meus ouvidos.  Fui operada a tempo de não sofrer nenhuma consequência grave, mas perdi boa parte da audição do lado direito. Vez ou outra me pergunto se a consulta no Salpêtrière teria evitado essa perda. Visitar o futuro do pretérito é um exercício viciante. Já atravessei noites sem dormir colecionando hipóteses. Quando o dia começa a raiar, aparece o inevitável: nunca vou saber.

Meu apartamento em Paris ficava perto de uma rua onde havia o hotel Brasil, cuja placa exibia as seguintes palavras: “aqui morou Sigmund Freud”.

Recentemente pensei em escrever um texto em homenagem à Anna O., a primeira histérica descrita por Freud. Considero seu caso belíssimo e acho que devo também a ela o agradecimento pelo início da psicanálise.

Desde criança sou fascinada por contar histórias. Acontece que tenho certo gosto por novelas que começou quando eu mal sabia trocar de canal. A teledramaturgia trabalha com grandes narrativas, que consistem em colocar uma série de elementos díspares dentro do mesmo roteiro, sem deixar nenhuma ponta solta.

No meu segundo mês de divã, perguntei à analista: sou histérica? Silêncio.

A escrita e a histeria têm lá suas semelhanças: nenhuma delas sobrevive sem saber narrar muito bem. A narrativa é uma espécie de trapaça – menos com os outros e mais com elas próprias. A escrita transforma num relato cinza a vida banal do escritor. A histeria é uma boa fantasia de cores vibrantes que dissimula o vazio das histéricas.

Às vezes é preciso dizer o óbvio: a escrita e as histéricas são muito sedutoras.

Não é difícil escrever um texto tocante. A tarefa consiste em escrever exatamente o que o leitor quer ler. As histéricas e os escritores também partilham desta qualidade: adivinhar rapidamente o desejo do outro.

Amarrar a ida à Salpêtrière, a dor de ouvido, o problema da escuta, o hotel Brasil e a dor de Anna O. em um mesmo texto seria tão fácil quanto prazeroso.

Dois meses após o diagnóstico do tumor, fiz a cirurgia. Passado o efeito da anestesia geral, não havia mais subterfúgios. Com muitos decibéis a menos, minha escuta captava enredos fragmentados que beiravam a falta de sentido.

Uma vez fiz uma paródia. “A histérica é fingidora, finge tão completamente, que finge ser dor, o desejo que deveras sente.” Gostou? Perguntei à analista. Continuamos a semana que vem, ela disse.

Na literatura, há sempre algo a ser dito. É por isso que a literatura está sempre por vir, afirmou o professor em uma aula sobre linguagem literária. Quando tudo já está dito, ainda não há literatura.

Afinal, onde colocar os desejos e as perguntas sem resposta?

Há poucos dias um amigo poeta me perguntou o que era possível dizer numa primeira sessão de análise. O que você quiser, foi a minha resposta. E então completei: tudo que é falável é material da análise. Nesse ponto ela está muito próxima da literatura.

Também tem outra semelhança que me ocorreu agora. É que a psicanálise e a literatura nos ensinam a fazer alguma coisa com aquela dor ensurdecedora das noites frias do passado.